quarta-feira, 9 de maio de 2012

O CÃO DAS LÁGRIMAS E A CRISE DA DEMOCRACIA

A palavra “crise” chegou, instalou-se no nosso vocabulário e a dita nas nossas vidas, traduzida numa evidência: para a generalidade dos mortais (nós) não há dinheiro, evaporou-se, o que há não chega e cada vez é mais escasso e a paralisia não gera dinheiro novo.  
Diz o povo que “casa onde não há pão, todos ralham e ninguém tem razão”. Por isso a escassez financeira que trás as nações à míngua rapidamente dá lugar à instabilidade social e política e à recessão económica. No plano familiar e pessoal, disparam os desaguisados e aumentam os divórcios e os suicídios. As estatísticas provam-no. O pessoal novo “dá de frosques” para outras paragens. Os velhos ficam para trás e os de meia-idade desesperam sem saber o que fazer à vida, subitamente desamparados, vendo esfumar-se tudo o que lhes estava alegadamente garantido e por que lutaram toda a sua vida. As nações sujeitas a este regime de garrote entram em desestruturação.
E no plano da Democracia? Da soberania que emana da vontade do povo, o que dizer?
Centremo-nos no caso da Grécia, esse caso de estudo da nossa era. Um paradigma do desmoronar do sonho europeu.
Na sequência das eleições de Domingo passado, o país entrou num círculo de ingovernabilidade, que já vinha sendo evidenciado desde que o colapso financeiro da Grécia se declarou o recurso à ajuda externa para expurgar as contas e evitar (adiar?) a banca rota se tornou inevitável. Senão vejamos esta sucessão de factos insólitos:

- O partido mais votado, Partido da Nova Democracia, não conseguiu o apoio de outras forças políticas para constituir governo e sai de cena, cedendo o passo ao segundo partido mais votado;

- Neste caso, a Coligação de Esquerda Radical (Syrica) quer rasgar o acordo com a Troika, tendo imposto esta condição para estabelecer alianças com outras forças políticas, o que no atual espectro partidário tornou impossível a formação de uma maioria governativa;

- Logo estes passaram a batata quente ao terceiro partido mais votado, os socialistas do Pasok, sendo que daqui não virá nenhum milagre;

- Acresce que os resultados excluem 38% da população votante, que se absteve[i];

- Dos votantes 14% votaram em pequenos partidos, não alcançando número suficiente de votos para se fazerem representar;

- Ou seja apenas uma percentagem de 48% da população, está representada pelos eleitos;

- Considerando as opções políticas do atual espectro partidário, apenas um terço da população apoia o memorando da Troika, o que levanta uma questão de legitimidade das políticas e de representatividade da vontade popular;

- Sem governo à vista ou com um governo anti-austeridade, a Grécia arrisca-se a não receber a próxima tranche de ajuda externa e precipitar a banca rota já em Julho.
-Se os gregos forem chamados a votar novamente nada permite vislumbrar que daqui saia a solução.

Neste cenário grego, a Europa está com a respiração suspensa; a Grécia está em roda livre, a imprevisibilidade do que irá acontecer é total; o cenário é surreal; a democracia está em crise e os sinais são de alerta para os perigos que a ameaçam: a desregulação do poder financeiro; o caos social; o recrudescer dos extremismos.
A imagem que me ocorre a propósito retiro-a das histórias visionárias do Saramago “Ensaio sobre a Lucidez” e “Ensaio sobre a Cegueira” e o seu fabuloso “cão das lágrimas” como último reduto para o consolo num cenário social em processo de desestruturação.

[i] a cifra não é consensual existido várias fontes com valores díspares que vão dos 35% aos 45%. Assumimos um valor médio e que foi também referido ontem na SIC Notícias por José Vitorino.